terça-feira, 29 de junho de 2010

Rancor


Vincent Van Gogh
Upload feito originalmente por musiciennedusilence

sentei hoje em frente ao pc para fazer o artigo que o Venturelli pediu sobre um conto do Marçal Aquino, percebi que não tinha o texto e fui pesquisar na internet... seria perfeito se algumas coisas fossem ao contrário...
Enfim, segue ele logo abaixo:

RANCOR - Marçal Aquino

(Polaroid n° 49)

Estavam naquela fase em que um faz tudo para conquistar o ódio do outro, na esperança de que algo intenso volte a pulsar entre os dois.
Tinham se amado muito, eu sabia. A maior paixão que vi.
Ela me contou que às vezes se imaginava bem velha, feliz, ou pelo menos esclerosadamente satisfeita da vida, mas não o via ao seu lado. E que era incapaz de prever como ele ficaria na velhice, porque tinha certeza de que não estaria por perto para ver. Uma ironia. Segundo ela, a maior declaração de amor dele: "Quero envelhecer junto de você".
Fotógrafa. No início, ele achava divertido esse lado dela: artista. Com o talento chancelado por meia dúzia de prêmios e exposições. Depois passou a considerar suspeitas as fotos que, aos conjuntos, estavam espalhadas pelos cômodos da casa—até no banheiro. Sempre paisagens. Nenhuma pessoa. Jamais um rosto ou corpo provocara um disparo da velha Canon que ela costumava usar. Ele me disse: "Sabe aquele tipo de cena fajuta, que você fica com a impressão de que a natureza posou para o fotógrafo e ainda recebeu por isso?"
Ele fizera um filme aos 22 anos. Amado pela crítica, ignorado pelo público. A partir daí, mergulhou na publicidade e colecionou prêmios. Falou-se muito sobre um roteiro, que ele nunca deu por concluído. Virou lenda no meio. "Só vinte e poucas páginas de anotações", ela me disse, explicando por que deixara de respeitá-lo. Não levava a sério pessoas que abandonam o sonho para ganhar dinheiro. Ou, como disse seu analista, ela não conseguia amar homens que deixara de admirar.
Aí teve o caso dele com a modelo. Exageraram: apareceram até numa coluna social. (Eu estava fora do Brasil nessa época.) "Uma prostitutazinha anoréxica", de acordo com ela. Retaliou: saiu com um amigo do casal, depois de uma festa. Não deu sorte: o cara não funcionou, culpou o uísque. Ela: "Eu procurando alguém que me desejasse e encontro um homem que me respeitava demais".
"Só em filmes medíocres e nas novelas da televisão as pessoas que se amam terminam juntas. Na vida real é o contrário: quem fica junto são as pessoas que não se amam", ele me disse. "Amar é passar a temer o futuro", ela me disse.
Mas se amaram.
Peço a ela uma lista com dez coisas boas dele.
Ela enumera:
1—seu cheiro
2—sua gentileza
3—seu senso de justiça
4—sua generosidade
5—seu bom-gosto musical
6—seu lado místico
7—sua inteligência
8—sua originalidade ao presentear
9—sua paixão por filmes antigos
10—seu pau
"Quer mais?", ela pergunta.
Amava os desertos. Uma vez fotografou um, na Líbia. Nenhum beduíno ou camelo. Parecia a mesma foto repetindo diversas vezes a areia em ondas douradas. Ele: "Os desertos dela são interiores. Lá, as tempestades de areia costumam durar meses".
Perguntei a ele sobre as coisas que a lembravam.
Antes de responder, ele olhou para o vaso sobre a mesa de centro entre nós: flores sinistras. "Dez? Basta olhar para ela e você vai encontrar bem mais de dez coisas."
Ela está apoiada na janela, olhando a noite. Sem roupa. Observo seu corpo: mesmo na penumbra, bem mais de dez coisas para um sujeito lembrar-se por um bom tempo.
Ao virar-se para me sorrir, seu perfil se enquadra contra o céu escuro. Sardas no rosto. Constelações.

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